Capítulo 3 - Ratos e Suco de Uva


 Confira o terceiro capítulo de Inspirados - O Andarilho do Tempo. A história conta com vinte e quatro capítulos prontos e a estimativa é de trinta e dois capítulos, embora esse número possa aumentar. Em todo o caso, espero que apreciem a leitura. Fiquem na Paz!

 
O tempo, passe ele lenta ou rapidamente, não deixa nenhuma pista de como será o futuro. Em três anos muitas coisas mudam... Ou não.

“O grande campo estava coberto de neve. O centeio fora tomado pela nevasca e, embora ainda fosse dia, o céu era negro e as nuvens pareciam pouco amistosas. Não havia uma única promessa no céu, uma sombra apocalíptica se formava sobre as tendas feitas de toras de madeira e palha seca. Talvez fosse apenas um mau agouro, mas, até aquele momento, as únicas criaturas que desafiavam o frio devasso eram os corvos. Eu me mantive todo o tempo no porão. Estava sozinho na cabana. Não. O medo me acompanhava.
            Embora ninguém ousasse fitar o horizonte, os aldeões sabiam que um mal devastador estava por vir, montado em um cavalo de vento, com sua tropa de extermínio aos flancos. Seria uma questão de tempo até que a aldeia não fosse nada além de uma mancha de sangue da imaculada brancura da neve. Os corvos, quase eufóricos, sabiam que, até o meio-dia, haveria um farto banquete a saciar o desejo por carne morta.
            Em um dia de sol, talvez a aldeia tivesse uma chance. Poderiam fugir para as montanhas e se refugiarem ao lado dos Calistos. Mas a neve os denunciaria. Embora fosse aparentemente tímida e dócil, aquela brancura escondia seus sórdidos segredos. Assim como os corvos, elas também tinham fome. A esperança era, agora, um triste e tolo folclore.
            Não tardou a começar.
            O trotar dos cavalos ecoava desde os vales até o pico das montanhas. Era quase possível afirmar haver um sorriso no bico enferrujado das aves famintas, enquanto as nuvens pareciam dar as costas ao triste cenário. As crianças começaram a chorar, sentiam o mal praticamente se aproximando. Os aldeões lançaram mão sobre qualquer objeto que poderiam usar como armas. Foices, pás, enxadas e martelos. As esposas abraçavam os filhos agressivamente. Uma mulher começou a gritar em uma das cabanas. Não se tratava de um ataque. A mãe abraçara a pequena filha forte demais, asfixiando-a. Os berros, no entanto, só serviram para apavorar toda a gente. Em menos de um minuto, todos gritavam e choravam, mas o medo ainda os mantinha estáticos dentro de suas casas.
            Finalmente, o som do trotar alcançou nitidamente os moradores. As primeiras coisas a despontar do horizonte foram inúmeros borrões velozes e minúsculos, correndo sobre a neve sem nenhuma dificuldade. Assim que alcançaram o campo do vilarejo, foi possível identificá-los. Ratos, de pelagem púrpura. Os olhos eram vermelhos e hostis, dentes afiados e uma expressão legível: pavor. Pela forma como corriam desgovernados, algo parecia ter assustado as pequenas criaturas. O mais lento do grupo de roedores foi esmagado pelo primeiro casco de um cavalo. Os outros chiaram como uma chaleira em ebulição. O céu começou a ficar nublado, cobrindo os campos de uma capa de sombra incomum.  
            O primeiro grito ecoou por toda a...”

            A caneta metálica caiu sobre a grama, enquanto Charlie sentia o caderno lhe ser tomado violenta e subitamente.
            O garoto, antes recostado na árvore enquanto escrevia uma intrigante história, agora estava de pé, encarando outros três garotos bem a sua frente. A volta deles, outros jovens conversavam, como de costume durante os intervalos no colegial.  
            - Me devolve isso, Drue! – bradou Charlie, furioso – isso é meu!
            - Hey, Grubs... – disse o rapaz chamado Drue, olhando para o caderno com desdém - Veja só, ele é um poeta.
            O garoto graúdo com cara de asno, ao lado de Drue, forçou uma gargalhada, mas não soou nada parecido.
            - Drue! – Charlie avançou contra o rapaz. Ele lançou o caderno para o terceiro amigo, o mais alto com cara de foca.
            - A mocinha quer continuar escrevendo, quer? – caçoou o líder do grupo.
            Charlie parou de insistir, apenas se afastou e encarou o trio. Sabia que uma briga era inútil e, certamente, perderia miseravelmente.
            Havia algo na realidade com a qual Charlie não conseguia lidar: ela nunca estava ao seu lado. Naquele momento essa verdade parecia ainda mais incontestável. Desde o seu primeiro dia na escola Drue era a fonte de todos os problemas do rapaz e, por mais que se empenhasse arduamente em evitar o valentão, era quase impossível mantê-lo distante. Charlie percebeu os olhares atentos dos alunos em sua direção. Alguns pareciam apreensivos, outros pareciam empolgados com uma provável briga onde, certamente, Charlie seria motivo de piada pelas próximas semanas.
Naquele momento, o rapaz sentiu saudade da sua primeira semana na cidade, quando conheceu Helena, há três anos. Era um garoto normal, sem rótulos, experimentando um ar renovado. Em um lugar como aquele, porém, era diferente. Era de se esperar, as terapias poderiam reprimir, mas não eram capazes de mudar sua personalidade.  
            - Isso é só um livro idiota, Drue... – Charlie balançou a cabeça, desanimado – pode ficar, se o quer tanto.
            Ele se virou, desistente. Havia a resignada derrota no tom da sua voz. Não possuía mais aquele medo de dois anos atrás. Apanhar, ser escorraçado e humilhado. De repente tudo isso não era grande coisa. Para Charlie, essas coisas eram como respirar. Era impossível viver sem. Ele sabia que, acontecesse o que acontecesse, ele estaria seguro dentro de sua própria mente. Era confortável ter um lugar onde ninguém poderia entrar.
            - Você é patético, maricas – riu Drue, socando o braço do amigo maior – tão patético que chega a me dar dó.
            Charlie estava caminhando quando sentiu o caderno acertar-lhe a nuca, fazendo-o se abaixar com o ataque surpresa.
            - Fique com esse monte de lixo, idiota. – dizendo isso, Drue se retirou, acompanhado de seus comparsas.
            Charlie, de joelhos no chão enquanto recuperava seu livro, não conseguia deixar de rir. Não um riso contente, satisfeito. Era a sua estranha maneira de lidar com situações do tipo. Aprendeu a ver sua própria vida como uma cômica ironia, em que, em suas histórias, ele era o cavaleiro de armadura branca que salvava as pessoas. Na vida real, por outro lado, era uma espécie de aspirante a bobo da corte.
            Permaneceu no mesmo lugar por algum tempo, esperando que toda a atenção se dispersasse e ele pudesse cruzar os corredores sem ser notado. Mas não pareceu durar muito.
            - Hey, Charlie! – uma voz irritante e muito familiar chamou pelo rapaz – Chars! Qual é o problema, cara? Por que não se defendeu?
            Então era isso. A triste realidade.
            O garoto era parecido com Charlie, porém menor e cabelos ligeiramente maiores. Ambos partilhavam dos mesmos olhos verdes, o nariz fino, embora Charlie ainda tivesse um rosto mais magro e fosse quase dez centímetros mais alto.
            - Me deixa em paz – pediu Charlie, colocando o caderno na mochila – você deveria estar tentando se enturmar. Ninguém anda com o irmão mais velho no colegial.
            Irmãos. Charlie estava em seu último ano, com dezoito anos mal contados, enquanto seu irmão, de apenas quinze, acabava de começar sua vida naquele colégio.
            - Charlie, o cara zombou de você. Não vai fazer nada?
            - Fica na sua, Andrew. Eu não quero que você fique andando comigo durante o intervalo, ok?
            - Por que não?
            - Ora... Eu não tenho que dar explicações. É assim que funciona.
            Charlie finalmente fora descoberto pelo irmão. Durante todo esse tempo o caçula encarava o irmão mais velho como uma espécie de “dono do pedaço”, um modelo a ser seguido. Andrew o conhecia muito bem, com todo o seu altruísmo, dedicação e consideração com as pessoas, ainda que fosse difícil vê-lo se relacionar com alguém. Durante quase seis anos Charlie foi voluntário em um asilo, e isso só fazia crescer ainda mais a admiração de Andrew.
            - Cara, mas... Aquele idiota te humilhou... eu achei que...
            - Andrew, cala a boca! – gritou ele, furioso, já com as bochechas vermelhas de puro ódio – Isso aqui não é, nem de longe, um parque de diversões pra mim! Nunca foi! Drue sempre me sacaneou, e vai continuar assim até a formatura! Não há nada a ser feito! É bom se acostumar com o irmão fracassado!           
            Enquanto Charlie dava as costas para o irmão rumo à cantina, Andrew permaneceu estático, tentando disfarçar o espanto. Pela primeira vez ele havia notado. Seu exemplo de vida era um perdedor.
            - Ah... Charlie! – Andrew começou a correr em direção ao mais velho – Olha, tudo bem. Vamos deixar aquele idiota pra lá. Vamos ignorá-lo, sem problema.
            - Façamos assim: nós ignoramos o Drue, e eu ignoro você. – resmungou Charlie, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. Entrou no corredor e tomou o seu rumo, deixando o irmão falando sozinho.

            *********************************************************

            Estava sozinho, de frente para o seu armário, número 207. Charlie olhou de um lado para o outro, certificando-se de que ninguém o veria. Finalmente, seguro de que nenhum olhar curioso o tinha como atenção, abriu sua mochila e tirou uma garrava com um líquido viscoso e arroxeado.
            - Suco de uva, mãe? – Charlie fez uma careta – não tinha nada melhor para fazer não?
            Colocou a garrafa no fundo do armário, procurando algo que pudesse cobri-la. Mexeu na mochila, sem saber, exatamente, o que procurava, apenas encenando a procura por um livro. Não queria que ninguém soubesse sobre os lanches que sua mãe o obrigava a levar. “Não sou nenhuma criança”, pensava ele, enquanto metia a mão na mochila, ignorando os livros didáticos.
            Seus dedos pousaram em seu caderno. Pegou-o, deixando a mochila cair com um baque leve. Folheou as páginas por poucos segundos, lendo partes dos trechos escritos por ele mesmo.
            - Isso está horrível – murmurou ele – não escrevo nada descente há... Há muito tempo.
            Encostou-se no armário, deixando suas costas deslizarem sobre o metal frio. Acomodou-se no chão e arrancou a última página do caderno, a última coisa que havia escrito antes de ser surpreendido pelo babaca da sua escola.
            Leu o último parágrafo, gesticulando os lábios sem deixar sair nenhum som.

“Finalmente, o som do trotar alcançou nitidamente os moradores. As primeiras coisas a despontar do horizonte foram inúmeros borrões velozes e minúsculos, correndo sobre a neve sem nenhuma dificuldade. Assim que alcançaram o campo do vilarejo, foi possível identificá-los. Ratos, de pelagem púrpura. Os olhos eram vermelhos e hostis, dentes afiados e uma expressão legível: pavor. Pela forma como corriam desgovernados, algo parecia ter assustado as pequenas criaturas. O mais lento do grupo de roedores foi esmagado pelo primeiro casco de um cavalo. Os outros chiaram como uma chaleira em ebulição.  
            O primeiro grito ecoou por toda a...”
            Não sabia como terminar. Odiou tudo o que havia feito. Amassou a folha devagar, sentindo a tensão esvair pelas pontas dos dedos, enquanto o pedaço de papel era lentamente esmagado. Suspirou longamente.
            Já não tinha muito que fazer ali. Levantou-se e jogou alguns livros na frente da garrafa, por precaução. Atirou a sua história, agora reduzida a uma bolinha de papel, para dentro do armário, sentindo a frustração escapando aos poucos. Apanhou o livro de álgebra e, dando uma golfada de ar, revigorou o ânimo e tomou sua direção rumo sala de aula. Sentiu-se um pouco culpado por gritar com o irmão, mas iria resolver o problema quando chegassem em casa. Ele sabia que, naquela realidade em que vivia, sua casa e sua família era a única verdade com a qual gostava de conviver.

            A aula foi uma droga. O professor era um gordo baixinho com a voz esganiçada, provocado pela “língua desconfortável”, como os alunos gostavam de chamar.Era como se a própria língua tentasse fugir daquela boca cheia de dentes amarelos. A gravata borboleta sempre estava muito apertada, a camiseta estava sempre coberta por uma mancha amarela de suor e, para piorar, fedia a cigarro.
            Em vários momentos Charlie se pegou distraído dentro de sala. Era um habitual costume, no primeiro dia de aula, ignorar todos os professores. Se se mostrasse interessado na matéria, Charlie correria o risco de provocar alguma simpatia em seus professores e, normalmente, esse tipo de coisas gerava uma série de perguntas e, a última coisa que ele queria, era resolver uma questão de polinômio na frente de toda a classe.
            Ao invés disso, pegou uma folha e, deixando sua mente viajar um pouco mais, escreveu um pequeno trecho, algo que andara pensando desde o último encontro com seu arquiinimigo Drue.

            “Eu não sei como chegamos até aqui. A corte estava um caos. As chamas devoravam as construções, e o sangue nunca foi tão vivo em meio ao vermelho-tijolo da cidade onde, outrora, a paz reinava em absoluto. Inúmeros vôos rasantes cobriam o céu com determinação. Dragões. Todo o tipo deles. Os enormes dentes, no entanto, não eram, nem de longe, o mais assustador. O cheiro de enxofre vinha acompanhado do calor infernal, enquanto inúmeras bolas de fogo explodiam em meio às torres e praças. Eu estava de frente ao completo pavor. Iriam destruir nosso vilarejo sem pensarem duas vezes.  
            O pavor havia se instalado e, ainda que eu tentasse me acalmar, imaginar que aquelas coisas estavam bem acima da minha cabeça não me agradava.”

            O sinal tocou no mesmo instante, despertando Charlie de seu devaneio. Ajeitou suas coisas na mochila e, assim que o professor deu a palavra final, saiu em disparada. Quanto mais cedo chegasse em casa, melhor.
            Estava saindo da sala quando avistou Drue e a dupla de idiotas próximos ao seu armário. Drue estava encostado no metal, enquanto duas garotas cheerleaders conversavam animadamente, exibindo o típico sorriso superficial.
            Houve um tempo em que Charlie acreditava que toda essa coisa de populares e impopulares não passava de enredo para filmes. Estava enganado. Se havia uma fantasia cinematográfica baseada na realidade, ele a estava vivendo nesse momento.
            Esperou atrás do bebedouro, sentado em uma cadeira fingindo amarrar o cadarço. Se fosse verdade, o cadarço seria quilométrico, mas toda a enrolação era uma manobra para evitar Drue e uma possível cena humilhante.
            Os minutos foram passando e Charlie já estava se cansando de esperar. O corredor estava praticamente vazio naquele momento, Drue já estava se despedindo das garotas. Pronto, agora era seguro. Levantou-se e seguiu em direção ao seu armário. Numero 207. Suspirou, aliviado e, em parte, frustrado. Por sorte, seria o seu último ano evitando todo aquele constrangimento. Iria fazer letras e viver em um círculo de pessoas intelectuais, superiores o suficiente para desprezarem completamente qualquer ato de bulling.
            Abriu o armário, tirou o livro de álgebra e guardou-o em meio aos outros. Estava pronto para sair, quando uma mão socou o seu armário. Aquilo estava ficando incômodo.
            - Vamos esclarecer uma coisa, Logan... – disse a voz grosseira de Drue, nunca mais me dê as costas daquela forma. Isso pode acabar com a minha reputação e, se isso acontecer, e você estiver no meu caminho, vou esmagar você.
            Charlie estremeceu. Aquele tom de voz ameaçador normalmente vinha acompanhado de alguma cabeça dentro da privada (normalmente era a do próprio Charlie), ou de algum dinheiro extorquido. Não era medo. Há muito tempo ele deixara de ter medo dos valentões. Seu único pesar era ficar mais tempo naquele lugar indesejado.
            - Olha, Drue... Você pode me odiar gratuitamente e me humilhar na frente de todos... – disse Charlie, sentindo que, talvez pudesse passar dos limites – Mas não pode me tirar o direito de ignorá-lo. E isso, meu chapa, é um direito meu. Você já leu a Constituição, certo?
            Drue abriu a boca, mas, como de costume, ele não era inteligente o suficiente para discutir como uma pessoa civilizada. Charlie deduziu que, talvez, fosse esse o motivo de Drue usar o punho constantemente para “interagir”. Charlie sabia muito bem o que estava fazendo. Drue passaria os próximo minutos se perguntando o que raios era a Constituição.
            - Se não se importa... – Charli pegou o último trecho de sua história e colocou-o dentro do armário.
            Drue empurrou Charlie, de praxe, e sumiu de vista. O rapaz respirou, enfim, mais a vontade, contente por não estar com a cabeça molhada. Fechou o armário, contando os segundos para chegar em casa. Estava trancando o armário, já passando o cadeado pela fenda da porta, quando pareceu ter ouvido alguma coisa. A principio não deu atenção. Mas o barulho aumentou. Apurando os ouvidos, deu uma analisada a sua volta, buscando a fonte do ruído. Parecia o som de algo chiando, como uma chaleira em ebulição.
            Esse pensamento causou um inexplicável arrepio. Percebeu, então, de onde viera o som, que se repetiu mais e mais. Fosse o que fosse, estava dentro do seu armário. Aproximou a cabeça da porta, para confirmar. Decididamente, era dentro do seu armário. Estava pronto para abrir o armário, quando...
            BUM!
            Charlie deu um salto para trás. Alguma coisa do lado de dentro bateu na porta, provocando um calombo na superfície de metal. Certamente, havia algo, e ele não sabia se queria descobrir do que se tratava.
            Aproximou-se lentamente, preocupado. Poderia ser alguma brincadeira de Drue, pensou ele. Provavelmente o Grande Final, o trote mestre, que faria com que o nome Charlie Logan fosse conhecido por todo o mundo pelos próximos vinte anos, como o cara mais idiota de toda a escola.
            Por mais que esse pensamento assolasse a mente do garoto, ele não imaginaria Drue colocando uma bomba no armário de alguém, ou alguma coisa que pudesse realmente ferir. Só havia uma forma de descobrir. Aproximou-se do armário com certo receio, mas, no meio do caminho, decidiu-se. Com ímpeto, meteu a mão no cadeado, removendo-o da fenda. Abriu sem estremecer.
            A primeira coisa que fez foi saltar, mais uma vez, para trás e soltar uma exclamação de surpresa e pavor.
            Um bando de ratos arroxeados pulou para fora do armário, em uma algazarra descontrolada, chiando e sacudindo para todo e qualquer canto. Corriam desenfreados pelos corredores, se enfiando nos cantos dos bebedouros, dentro das latas de lixo ou desaparecendo no fim do corredor, entrando em salas vazias. A primeira coisa que fez foi agradecer por estar sozinho. A segunda... Foi se queixar por estar sozinho.
            Ver aquela cena, de alguma forma, o fez sentir um frenesi súbito. O que iria fazer? Chamar ajuda? Mas aí precisaria dizer o que tinha acontecido e, ainda que tivesse tempo para pensar, não iria bolar uma desculpa para explicar o porquê de ratos púrpuros estarem dentro do seu armário. Ele mesmo não saberia explicar isso a si mesmo.
            Tentou entender como acontecera. Agora pouco estava de frente ao armário aberto, nada havia entrado, ele tinha certeza. Tudo o que havia deixado eram os seus livros, um gibi e a sua garrafa de suco de uva. Era improvável... Não, era impossível que aquelas coisas tivessem entrado sem serem notadas. Haveria uma explicação plausível, mesmo porque, acontecimentos mirabolantes acontecem apenas em fábulas e, Charlie sabia muito bem, esse tipo de coisa não existia.
            Só conseguiu pensar em uma coisa naquele instante. Esvaziou toda a mochila, guardando os livros no armário. Fechou-o e saiu em disparada na direção do primeiro rato que surgira no seu campo de visão. Mais tarde ele diria que foi pura tolice, mas, ao mesmo tempo, esclarecedor. Mesmo porque, o mais bizarro ainda estava para acontecer.  
            Não foi fácil. Eram ágeis e pequenos, mas, finalmente, ele conseguiu pegar o primeiro. Segurou o animal asqueroso pela cauda e tacou-o dentro da mochila, fechando o zíper.
            - Menos um... Falta mais um monte... – murmurou, enquanto corria na direção do rato mais graúdo, que se esquivara para dentro da lixeira.
            Agarrou-o com firmeza, desviando da mordida, jogou-o na mochila e confinou o animal. Já estava ofegando, quando viu um pequeno bando deles correndo para dentro do laboratório. Excelente, ratos desgovernados dentro de uma sala onde tudo era frágil e fácil de ser quebrado. Ele precisava detê-los. De uma forma inexplicável, ele se sentia responsável pelos bichinhos.
            Correu até o laboratório, fechou a porta e ficou em silêncio. Precisava acompanhar o movimento pelo som.
            Ouviu um grunhido debaixo da mesa. Saltou sem aviso, escorregando no chão liso e tateando sem ver exatamente o que estava fazendo. Seus dedos agarraram uma cabecinha peluda, Charlie puxou o rato para si e, abrindo a mochila, jogou-o apressadamente. Os outros dois tentaram fugir, mas não conseguiam competir com as mãos do garoto.
            O outro rato estava dentro de um béquer, comendo algo verde. Correu até ele, usando a palma da mão como tampão, aprisionando o bicho dentro do recipiente. Abriu uma fresta na mochila e despejou o animal. O próximo estava em cima do armário. Esse foi o mais difícil. Charlie precisou usar a vassoura, derrubou dois tubos de ensaio, um cadinho de porcelana e uma garrafa com uma cobra em conserva.
            Demorou quase vinte minutos para ter certeza de que havia pegado todos os que entraram no laboratório. Sete. E já estavam lotando a mochila. Pelo menos uns trinta ratos tinham escapado do seu armário e, a não ser que tivesse uma bolsa maior, seria impossível pegar todos.
            - Maravilha. Esse é o meu fim...
            Saiu do laboratório em silêncio, caminhando na ponta dos pés, como se isso pudesse tornar menos real sua loucura por carregar ratos na mochila. Passou em silêncio pelo corredor, apurando a visão e vasculhando cada fresta, cada canto minúsculo que pudesse abrigar uma bola de pêlo roxa e asquerosa. Foi quando o ar faltou em seu pulmão.
            Próximo à porta do diretor, um rato consideravelmente grande estava roendo o fio que alimentava o motor de um dos aquecedores. O animal ficou imóvel diante de seu observador. Levantou sua cabeça minúscula em direção a Charlie e o encarou com aquele par de olhos vermelhos irritante.
            - Você é meu, chapa... – murmurou ele, suficientemente baixo para que mais ninguém ouvisse.
            O rato notou a posição de ataque. Abandonou o fio e encarou a porta do diretor. Naquele momento, era como se estivessem se comunicando e, para o aborrecimento de Charlie, ele sabia exatamente o que o bicho estava prestes a fazer.
            - Não... Não... Não!
            O rato disparou em direção à porta do gabinete do diretor. Sem pensar meia vez, Charlie correu no mesmo sentido, sentindo a pulsação cada vez mais urgente. O som das patinhas do rato chicoteando o piso parecia com o som de brasa. Apertou a alça da mochila entre seus dedos. Estava bem perto agora.
            Estava próximo, e cada vez mais... O rato também se aproximava da porta.
            Outro bum! O animal se chocou contra a porta com uma agressividade incomum. Não houve muito o que dizer. O impacto parecia ter feito o rato estourar. E foi o que aconteceu.
            O que antes era um rato, agora não era nada além de uma mancha roxa escorrendo no vidro da porta, como se um balão de água com corante fosse atirando contra o gabinete.
            Um último chiado de sua mochila, e Charlie encarou, perplexo, um líquido roxo escorrer pelo pano, que se tornou cada vez mais leve. O interior de sua mochila ficou calmo e silencioso. O cheiro de suco de uva inundou o corredor. Sem acreditar no que acabara de presenciar, abriu a mochila e constatou o que temia: não havia mais nenhum rato. Apenas seu suco escorrendo e sujando todo o piso.
            Não precisou nem esperar o diretor sair por aquela porta para sumir de vista. Provavelmente, no dia seguinte, iriam fazer uma varredura pela escola, até encontrar o engraçadinho que havia espalhado todo aquele suco de uva pelos cantos da escola. A última coisa que ele fez antes de sair secretamente da escola, foi se certificar em seu armário. A garrafa estava aos pedaços.

2 inspirações:

  1. Uau! Adorei esse capítulo, principalmente essa última cena com os ratos, foi simplesmente perfeita. Você conduziu a história de maneira bem envolvente até agora, parabéns ;)

    No capítulo anterior, estava ansiosa para saber um pouco mais sobre Helena, sua amizade com Charlie e era isso que esperava nesse capítulo, mas ao começar a lê-lo percebi que já havia se passado algum tempo e pensei que não fosse gostar disso, mas ao chegar no fim do capítulo percebi que nem me importava mais com isso. O capítulo foi ótimo !

    Bj;*
    Naty - Just Books !

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  2. Nossa, sua história é mto envolvente, e suuper criativa.
    Quando acho que vai acontecer uma coisa acontece outra, o que é legal, porque sempre me surpreendo :)

    Só sei que ainda tô no terceiro capítulo e já tô amando :D

    Bjs ♥!!!

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos