Capítulo 7 - Por Trás da Porta - A Rainha


            - O que eu faço, Charlie? – grunhiu, baixinho, o irmão mais novo – acho que preciso ir a um médico.
            Charlie e Andrew chegaram em casa às quatro da manhã e, naquele momento, estavam no quarto do irmão mais velho. A luz estava acesa, as portas e janelas trancadas, e os ouvidos abem atentos a qualquer movimento.
            Andrew enxugava as lágrimas no lençol, enquanto Charlie enrolava uma manta em volta do braço disforme do caçula, dando o volume de um braço saudável.
            - Duvido que um médico saiba o que fazer com isso... – murmurou Charlie, mais para si mesmo que para o irmão. Levantou-se, pegou uma jaqueta e atirou-a ao caçula – por hora, você precisa usar roupas de mangas bem largas e luvas. Aqui...
            Charlie recheou uma luva de couro com algodão e tiras de pano velho, dando mais volume.
            - Precisa encolher os dedos – pediu Charlie. O irmão o fez.
            A luva coube razoavelmente bem, mas ainda assim ele estava chamando atenção demais.
            - Droga... precisamos resolver isso...
            - Como você pode estar tão tranqüilo, cara? – Andrew sibilou, tentando ocultar o desespero que tentava escapar pela sua garganta.
            - Eu, tranqüilo?
            Charlie, de repente, foi desperto. Os acontecimentos daquela noite vieram como uma ducha gelada sobre seus ombros, fazendo-o despertar de um transe de completa indiferença que assumira para poder tirar o irmão daquela escola. Afinal, precisava estar com a cabeça fria para tal feito. Naquele momento, porém, Andrew havia despertado o medo do irmão mais velho.
            - O que vamos fazer, cara? – perguntou Andrew – o que...
            - Eu não sei... – falou Charlie em voz baixa, sentando-se no chão e cobrindo o rosto com as mãos – não tenho ideia do que fazer...
            Os pensamentos pareciam agulhas fustigando sua mente já moída e aos frangalhos. Não havia resposta para tudo o que estava acontecendo. Estiveram de frente a um pesadelo poucas horas atrás, acabara de descobrir que a garota que despertara nele algum sentimento era cheia de mistérios e representava potencial perigo. Para piorar, seu irmão fora quase convertido em uma monstruosidade, tal qual o zelador.
            Um pensamento relâmpago atordoou sua mente. Charlie vislumbrou o momento em que empurrou seu irmão em direção ao corredor escuro, à mercê das sombras. Era sua culpa, não podia deixar de pensar. Tudo aquilo, todas as coisas que pareciam ter saído de suas histórias. Mas as sombras... Ele não tinha ideia de onde, raios, vieram. Seria ele o autor de tamanha bestialidade? Se fosse, Charlie poderia se acostumar em se sentir culpado, pelo que ocorrera ao zelador.
            - Charlie... – Andrew chamou o irmão, fitando-o com o pavor estampado nos olhos verdes – eu vou morrer?
            Charlie estremeceu. Sentou-se ao lado do irmão, envolvendo-o num abraço fraterno e aterrador. Ainda que não quisesse, parecia soar uma despedida.
            - Não! Nada vai te acontecer. Você tem a minha palavra!
            Uma ideia passou voando pela sua cabeça.
            - Acho que tenho uma solução para essa situação.

            A dor estava passando aos poucos. Nenhum dos dois havia conseguido pegar no sono. A única coisa que puderam fazer foi trocar uma ou outra palavra e, numa dessas, Charlie acabou dizendo o que havia acontecido, sobre Helena e Ernesto. No mais, passaram o resto da noite contemplando o teto. 
            Quando, finalmente, o despertador soou, Charlie acordou num sobressalto urgente. Seu irmão não estava mais no quarto. Não demorou nem dez minutos, Charlie já estava na cozinha, ansioso, esperando pelo irmão. Tinham algo em mente.
            Demorou, mas Andrew apareceu, afobado. Ao que parecia, o braço já não doía, ainda que a aparência fosse a pior possível debaixo do disfarce. Lauren também estava na cozinha, absorta em seu trabalho, preparando torradas e omeletes. O suco e as rosquinhas de açúcar já estavam sobre a mesa.
            - Por que demorou tanto? – queixou-se Charlie em voz baixa.
            - Eu não sei, deixa eu ver, ahn... Ah! Lembrei, eu tenho um braço maligno que pesa o dobro do meu braço normal. Boa desculpa?
            Charlie não pôde evitar o sorriso. O irmão parecia parcialmente restaurado, pelo menos psicologicamente. Os dois beberam o suco numa única golada, engoliram uma rosquinha e se despediram da mãe. Lauren virou-se para os filhos, curiosa.
            - Que pressa é essa, rapazes? Ainda é cedo.
            Charlie se manteve em silêncio. Uma única palavra, e estaria se entregando. Andrew se adiantou:
            - Vamos à biblioteca. Charlie vai pedir Helena em casamento – e gargalhou.
            Charlie não achou a menor graça, corou feito uma cereja e engasgou com o protesto. Mas a manobra evasiva funcionou, desarmando Lauren e todas as suas perguntas desconfiadas.
            - Ok, mas não vão se perder em conversas, ok? – e ela acenou, rindo.
            Os rapazes saíram em disparada assim que a mãe os dispensou.

   ******************************************************************
           
O ônibus parou a duas quadras de distância. Levou alguns minutos para chegarem à biblioteca. Estavam de frente à construção antiga, porém bastante conservada.
- Tem certeza? – perguntou Andrew.
            - Mais do que nunca. Não há a quem mais recorrer.
            Andrew ficou pensativo.
            - Quer dizer que Helena e o primo troglodita são... O que eles são?
            - Estranhos – concluiu Charlie, sem encontrar a resposta certa – Mas de um jeito diferente... Acho que de um jeito bom.
            - Contanto que não haja dragões e sombras querendo fazer picadinho da gente...
            Subiram as escadas da entrada. Cada passo pesava como uma decisão importante e, ainda que Charlie quisesse voltar e tentar esquecer, não podia. Não depois de causar, indiretamente, tamanha aflição ao irmão mais novo.
            Empurrou a porta de madeira, que rangeu preguiçosamente, enquanto o cheiro de mofo tentava escapar. Assim que Charlie fechou a grande porta, sentiu o peso da decisão ainda maior em seus ombros.
            O homem estava atrás do balcão. Tio Munphus, “o velho cocô”, como gostava de dizer Andrew secretamente. Eles vasculharam a biblioteca com os olhos, mas não encontraram nenhum rastro de Helena ou Ernesto. Era provável que estivessem mantendo o dragão cativo. Em algum lugar.
            - E agora? Qual o próximo passo do seu grande plano? – perguntou Andrew impaciente.
            - Ta vendo aquela porta?
            Charlie apontou em direção à porta gigantesca de madeira e metal, presa com parafusos do tamanho de um dedão. Ela ficava na extremidade do salão, e rangia toda vez que era aberta, como se gritasse em protesto à sua violação. Charlie passou os últimos três anos escondendo sua curiosidade, mas era inocente e sem grande resolução. Naquele momento, porém, sua simples curiosidade fora convertida em uma obsessão. A placa de “Apenas Funcionários Autorizados” era como um convite ante a situação.
            - Vamos entrar lá? Mas tem um aviso...
            - Andrew, nós invadimos a escola essa madrugada, então poupe qualquer discurso moral, ok? Venha.
            Charlie caminhou em direção ao balcão, tirando do bolso sua carteirinha de cadastro.
            - Bom dia – sorriu o rapaz.
            Tio Munphus estava lendo um livro grosso e muito antigo, quando encarou a dupla com um olhar de desprezo. Charlie sorria cordialmente, e agradeceu intimamente pelo velho bibliotecário não ser capaz de decifrá-lo como Lauren fazia.
            Munphus simplesmente certificou a credencial e permitiu a entrada com um aceno breve, voltando sua atenção ao livro.
            Assim que se distanciaram o suficiente, Charlie falou em tom sibilante:
            - Vamos ficar atrás das estantes. E depois “escorregamos” até aquela porta.
            - Não sei se vou conseguir “escorregar” com um braço de meia tonelada... Quero tirar isso logo.
            - Não se preocupe. É a última vez que te vejo nesse estado. Prometo – Charlie sorriu, confiante.
            Levou alguns minutos para, sorrateiramente, se aproximarem da porta. Estavam com os joelhos levemente arqueados, de forma que não enquadrassem no campo de visão do velho bibliotecário.
            - Essa maldita porta vai ranger. – comentou Andrew.
            - Assim que forçarmos, corremos como loucos. Lá dentro, saberemos o que fazer.
            Charlie, diante do olhar de completo ceticismo do irmão, teve que admitir. Era terrível em bolar planos. Sua criatividade parecia não ser útil quando se tratava de invadir silenciosamente.
            - Force o cadeado – pediu o irmão mais velho.
            Andrew encarou o irmão, irritado, como quem diz “seu sacana miserável”, ou algo do tipo.
            - Vamos, eu cubro você.
            Andrew se rendeu. Foi até o cadeado, estava destrancado. Quando fez menção de virar a alça de metal, ele estremeceu. Andrew solto-o, surpreendido.
            Charlie fitou o irmão, confuso. Fez uma careta de o-que-ta-pegando e esperou um resultado.
            Andrew gesticulou com os lábios “essa merda ta viva”. Charlie compreendeu, mas sacudiu a cabeça negativamente.
            “Continue”, sussurrou Charlie.
            Mais uma vez. Andrew segurou a alça de metal e tentou girá-la. Ela estremeceu, mas, dessa vez, Andrew insistiu. Então ela balançou, como se fosse uma serpente. A corrente deslizou sobre o puxador da porta e, no lugar do trinco da chave, apareceram presas. Um cadeado com dentes.
            “Mas que m...” Andrew saltou para trás, saindo do campo de alcance do cadeado com dentes. Assim que o fez, o objeto tomou sua forma normal, caindo, pendendo inocentemente.
            Andrew olhou para o irmão. Ele estava boquiaberto. Olhou de soleira, para se certificar. Tio Munphus nada ouvira.
            - Ok, deixa comigo. – Charlie murmurou para si mesmo.
            Caminhou até o irmão. Observou o cadeado, cauteloso. Parecia ser uma mordida bem violenta. Charlie se decidiu. Segurou com força o cadeado e, respirando fundo, girou a alça, pronto para o pior. Afinal, não podia voltar, não depois de tanto em jogo.
            O cadeado cedeu. Simplesmente girou, abrindo passagem. Andrew encarou o irmão, confuso.
            - Mas ele tinha acabado de...
            - Eu sei, chapa... Ele deve ceder às insistências, talvez...
            - Que seja... Vamos entrar logo e dar um jeito de pegar meu braço de volta, ou seja lá como for.
            Estavam prontos para correr assim que a porta começasse a ranger. Abriram uma pequena fresta, alargou-a um pouco mais. Nada, a porta permanecia em silêncio. Charlie começou a se perguntar se poderia chamar isso de sorte, ou se fazia parte de sua maré de azar.
            O espaço era suficiente para poderem passar. Entraram em silêncio e encostaram a porta sem fechá-la por completo, para que o som estridente do trinco não chamasse atenção.
            - Não entendi a do cadeado – murmurou Andrew, quando julgou ser seguro.
            - Doidera, han?
            O lugar estava escuro, era impossível enxergar qualquer coisa a um palmo do nariz. Charlie segurou o irmão pela manga da jaqueta, sempre os mantendo próximos. Não queria perder Andrew por completo.
            Charlie tateou a porta e deslizou os dedos por toda a sua extensão. Passou pelas dobradiças, enormes por sinal, e, finalmente, tocou a parede. Parecia ser feita de tijolo, mas esfarelava como barro. Continuou apalpando, em busca de um interruptor. Nada.
            Avançaram um pouco mais. Estavam se afastando da parede, em direção ao que acreditavam ser o centro da sala, ou fosse o que fosse aquele lugar coberto pela escuridão.
            - Eu não consigo enxergar nada – murmurou Charlie, ainda segurando o irmão.
            Subitamente, uma claridade dourada invadiu a sala, engolindo a escuridão decididamente. Uma chama brotara do centro do salão, aquecendo o lugar e dando à vista tudo o que ali havia.
            Os dois irmãos lançaram um olhar panorâmico em volta, boquiabertos. Não era uma sala comum, nem de longe.
            As paredes eram altas, equivalente a um prédio de cinco andares. Acima, no teto, vários arcos projetavam o que parecia ser o “esqueleto” de um guarda-sol gigante. Centenas de estantes com livros grossos e antigos ocupavam o maior espaço. A grande chama brotava de uma fonte de pedra, onde uma flor de lótus aberta permitia, através de seu orifício, a saída do fogaréu brilhante. Um brilho diferente, quase mágico.
            O chão era coberto por um tapete verde que, logo, foi identificado como nada menos que grama. Bem aparada e cuidada, como se fosse um verdadeiro jardim. Foi aí que eles notaram. Entre os livros e estantes, pequenas trepadeiras se espreguiçavam, exibindo folhas verdes e flores de diversos tons de azul e vermelho, além de frutos em tom carmesim, dando ao lugar uma aparência de mundo de fantasias. Como nos contos de fadas.
            Várias janelas compunham o lugar, mas estavam cobertas por uma veneziana de madeira, aparentemente pesada. Várias mesas estavam dispostas e, ainda, havia um segundo piso, onde mais livros, trepadeiras e grama dividiam espaço.
            - É extraordinário! – exclamou Andrew – nunca vi nada igual!
            - Não sei o que mais incrível. Isso ou você falando ‘extraordinário’.
            Ainda estavam admirados com a beleza da sala misteriosa. Subitamente, um ronco os fez despertar. Olharam em direção à parede da extremidade. Mais uma porta, porém menor e inteiramente de madeira, com adornos de palha.
            - Foi do outro lado, não foi? – perguntou Charlie.
            - Não vou violar mais nenhuma porta, Charlie, não mesmo!
            - Então você fica...
            A porta se abriu. Sem delongas ou cerimônia. Foi sacudida, estremecendo em sua dobradiça enferrujada. Um vulto surgiu, caminhando lentamente, com passos graciosos, como uma figura dos contos de fadas.
            Era uma mulher. Ou muito parecida.
            Um longo vestido vermelho, com adornos dourados e um longo chapéu em forma de carretel mantinha firme a longa cabeleira loura. O rosto da mulher era rosado, as bochechas protuberantes, os olhos esguios e amarelos como o próprio sol. A íris, no entanto, era comprida, em forma de fenda. Olhos felinos. Charlie acabou notando, nas extremidades da testa, duas orelhas de gato.
            - Que merda é essa?
            - Andrew, diga isso mais uma vez e eu quebro os seus dentes.
            A gargalhada da mulher interrompeu a discussão.
            - Ora, crianças. Não sejam tão precipitadas. Temem o que lhes parece novo, não?
            Charlie fitou a mulher de aparência felina com olhares desconfiados. Ela pareceu perceber, mas pouco se importou.
            - Munphus anda muito ocupado, pouco tem me vigiado... Vocês estão aqui aos cuidados deles?
            - Não... – Andrew quem respondeu – na verdade, ele não sabe que entramos. Ele não gosta de nós.
            A mulher sorriu, exibindo longos dentes brancos como a própria neve.
            - Ora, vejam só. Pois saibam que estão tendo o privilégio de conhecer a rainha de Kanwitcha, Morganna de Poumpadour. E essa, senhores, é minha filha.
            A mulher que dizia ser rainha afastou-se da porta, dando espaço para que uma nova figura entrasse na sala. Uma figura menor, porém igualmente fascinante se aproximou. Uma garota, não convencional. Aparentava ter quinze anos, tinha longa cabeleira negra, envolvida num carretel que mantinha preso às costas, como uma bolsa. Seu vestido era branco com tiras rosadas. Os olhos eram idênticos aos da mãe.
            - Ophelia de Pompadour. – anunciou Morganna, como se anunciasse a uma multidão de fãs – a princesa de Kanwitcha.
            Ela fez uma reverência discreta, como uma verdadeira dama. Mas a imagem daquelas duas orelhas pontudas ainda incomodava e, por mais que Charlie quisesse dizer alguma coisa, não havia palavras que pudessem iniciar um diálogo inteligível.
            - Munphus, o imperador do Literadouro. Aquele homem não está aqui, está?
            Charlie estava prestes a responder, mas Andrew o fez da forma mais idiota e ingênua.
            - Não mesmo! Entramos aqui sem o consentimento dele. Se descobrir que estamos aqui, ele nos mata.
            Ela não pôde evitar de sorrir. Um sorriso frio, algo que lembrava um desejo doentio. Um vício, talvez.
            Charlie lançou um olhar urgente de reprovação em direção ao irmão.
            - Então... Se eu o fizer, ele me será grato.
            - “Fizer”? – Charlie arqueou a sobrancelha, mantendo o irmão sempre atrás dele – fizer o quê?
            - Matá-los, ora – ela falou naturalmente. Ophelia sorriu, afirmando com um gesto singelo – se ele os quer morto por invadir, é morto que os terá. Mesmo porque, tenho fome, e minha filha tem um paladar requintado. As crianças do campo em meu reino têm gosto de terra. Já vocês... Tem uma fragrância adorável de amadeirado.
            - Você... Vai nos comer? – Charlie segurou o irmão com mais força. Agora ele estava entre a rainha e Andrew.
            - Boa dedução, rapaz. Seja grato, você é a refeição mais inteligente que já escolhemos. Vamos, querida, escolha primeiro.
            A garota, que até o momento nada fizera se não observar, deixou um sorriso se desenhar em seu rosto felino. Sua língua brincou sobre os lábios, e Charlie percebeu, a tal princesa tinha fome.  

3 inspirações:

  1. Prometo que assim que chegar da prova do Enem no Domingo, eu leio e comento! (yn)

    ResponderExcluir
  2. isso se você conseguir ler alguma coisa depois do enem rsrs

    ResponderExcluir
  3. A estória fica cada vez mais interessante, conforme vou lendo :)

    E esses dois irmãos são umas figuras rsrs

    Bjs ♥!!!

    ResponderExcluir

Sua opinião = espinafre
Eu = Popeye
Spam = Brutus
~~
Fique à vontade, dê sua opinião, diga o que pensa, critique e elogie. Só não perca a chance de ser lido ou ouvido quando lhe for dada essa oportunidade! xD
Boa leitura, e vai pela sombra \o/

 
Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos