Berçário de Ideias #1 - Sergeit, o Caçador de Libélulas

Você conhece um Inspirado?
São esses que andam por aí, disfaçados de gente comum, mas, no bolso, carregam uma folha de papel em branco e um lápis de ponta fina. Quando ninguém olha, eles começam... 'Risca', 'risca', fala o lápis enquanto passeia sobre a folha de papel. Quando você menos espera, não é uma história, mas um novo mundo.

Assim nasceu, Sergeit, o Caçador Libélulas. A lenda do ladrão de sonhos.


~***~


Sergeit, O Caçador de Libélulas

 

    Voar não fazia parte de seus planos. Sergeit pensou que fosse vomitar quando o balão iniciou sua subida virtiginosa. O gosto de bile era quase tão incômodo quanto as bolotas de carne que tia Judite fazia quando a pastagem era boa e o gado oferecia carne em abundância. 
    Mas, dali de cima, o pasto era um tapete verde, cheio de piolhos, e Sergeit supôs que fossem os bois de tia Judite vistos de longe. Ninguém duvidava que ele era um garoto esperto, para os seus ingênuos oito anos, mas, também, ninguém tinha a tolice de acreditar que Sergeit era uma criança comportada. Não mesmo. O menino sonhava demais e, geralmente, esse hábito trazia um bocado de problemas. Tia Judite era uma testemunha diária.

    A vida no campo era empolgante, mas não era sempre a grande beleza que se vê em quadros bucólicos pintados à oleo. O que salvava os dias monótonos e ensolarados eram os vôos de balão, ao lado do tio barrigudo, Tom. Sujeito atarracado e de sorrisos fáceis, tio Tom era do tipo que se pode confiar tudo, pois não era de falar de gente ou de fofocar, como gostavam as senhoras da província. Tom gostava, mesmo, era de contar histórias. Sergeit era apaixonado pela empolgante narração e pelas fantásticas criaturas que brotavam dos lábios criativos do velho barrigudo.
    Aquele dia foi um dia diferente, não por envolverem acontecimentos extraordinários. mas foi o dia em que o menino vivaz e peralta ouviu uma história que o transformou de tal forma, e, num estalo, Sergeit não era mais ele mesmo. Não era o mesmo garoto coberto de sujeito com ideias travessas... Bem, a sujeira ainda estava lá, mas as travessuras foram parar em segundo plano, debaixo do tapete no grande hall de ideias na mente brilhante do menino. Foi quando ele ouviu a história das Libélulas Dançantes


    "Sabe, filho...", dizia Tom, engolindo uma boa torrada amanteigada quando o balão repousou obedientemente no céu claro. "Todos nós sonhamos. Pesadelos, sonhos lindos, fadinhas e o que vier à sua mente quando pensa em sonho. Dormir, entende? Fechar os olhos e viajar em um lugar onde não há nada real... Como um parque de diversão gratuito, em que as coisas nem sempre são tão engraçadas".
    Sergeit riu. Não por ser engraçado, mas havia uma aura em seu tio, uma infantilidade incomum e perpétua, talvez a essência de uma criança confinada em um corpo velho e gorduroso. Mas o sobrinho manteve sua atenção constante.
    "Mas você acha que os nossos sonhos somem quando acordamos? Não mesmo! Não vá me dizer que nunca ouviu falar que, 'na natureza, nada se perde'? A lei continua valendo, mesmo quando estamos dormindo! Sabe... Nossos sonhos não desaparecem feito fumaça... Todos os dias, quando acordamos, uma libélula sai voando de nossos ouvidos. Ela é quem leva os nossos sonhos. Por isso quase nunca sonhamos com a mesma coisa. Se isso acontece, é porque a libélula ainda não saiu".
    Sergeit tapou as orelhas, assustado. Ficou tateando o lobo preso, depois enfiou o dedo bem no fundo do ouvido, tentando encontrar algo com asas. Mas não havia nada ali. Tio Tom de uma gargalhada gostosa, cuspindo torrada para os lados, fazendo o sobrinho rir mais uma vez.
    "Elas só saem à noite, meu rapaz", informou o tio, presunçoso. "Sabe, nós nunca vamos conseguir vê-las voando, porque são muito ágeis. São espertas, não se deixam ser pêgas por moleques arteiros como você, nem por velhos comilões como eu. Sabe? Conheci um sujeito, em uma de minhas viagens de balão, que conseguia pegar todas as sua libélulas. Ele jurava que guardava seus sonhos em um pote de vidro! Veja só, que malando! Mas o patife... Não diga a sua tia que eu falei 'patife', combinado?... Pois bem, o patife nunca me contou o segredo. Disse que queria todos os sonhos só pra ele".
    Sergeit fez uma expressão de pura revolta. Só para si? Quanta insolência, pessou o menino. Ninguém tem o direito de ter os sonhos só para si. Que deixasse as libélulas voarem, e levarem os sonhos para outras mentes sonolentas! Sergeit ficou, mesmo, chateado.
    "Ora, não se preocupe, filho", tio Tom serviu-se de outra torrada, "Um dia eu ainda apanho aquele pote, e prometo, olha, faço o pacto do dedinho, que irei trazer todos os sonhos pra você".
    Mas tio Tom era um homem velho, sua saúde não era das melhores. No inverno daquele mesmo ano, ele precisou descumprir sua promessa. O dedinho era muito pequeno para sustentar uma alma tão viva como a de tio Tom em um corpo tão cansado e doente. E tudo o que sobrou foi um balão, e uma história maluca sobre sonhos que viravam libélulas.

~***~


 

~***~
    
    Sergeit soprou as velas de seu bolo de aniversário. O primeiro sem a doce presença de seu tio. Sentiu falta das histórias, dos passeios a balão, das migalhas nervosas que saltavam da boca de Tom. Tia Judite olhava, pesarosa, o querido sobrinho sonhador se perdendo em uma tristeza que não era comum a uma criança de exatos nove anos. Mas tão bem ela sabia que jamais poderia ajudar o menino a preencher aquele vazio deixado pelo tio Tom. Isso era uma coisa que Sergeit precisava fazer sozinho.
    Naquela mesmo noite, ele fez uma oração silenciosa, apagou o lampião a óleo e deixou que apenas a luz prateada da lua se fragmentasse no vidro empoeirado da janelinha de seu quarto. Ele fechou os olhos e, depois de alguns soluços, adormeceu.
    Teve um sonho engraçado. Tinha uma mulher loura sentada perto de um penhasco, ela olhava para um grande balão no céu. Ao lado da mulher, um tigre branco, tanto quanto a própria neve, lançava sua cauda feupuda de um lado a outro, parecia dócil e ineressado no objeto que pairava acima de suas cabeças.
    Sergeit estava com uma longa túnica branca, com bordas douradas e uma luva cor de carvão. Sua cabeça era envolvida por um turbante escarlate. Mas não estava interessado nas próprias roupas, queria mesmo era ir ao encontro da mulher e seu animal, olhar o balão e, com sorte, viajar pelos ares, como fazia antes. Ele estava pronto para dar o primeiro passo, mas algo o impediu. Uma mãozinha delicada segurou-o pelo braço e, surpreso, o menino virou-se para o lado, encarando a figura dona da mão misteriosa.
    - Não vá até lá - avisou uma voz feminina - Não deixe ela saber que estamos aqui. Ouviu bem? Não deixe!
    A menina usava um longo vestido azul-céu-claro, as faces rosadas e infantis tinham um brilho próprio, como se minúsculos sóis estivessem incrustados nos poros de sua pele. Seus cabelos grisalhos feito ouro branco escorriam pelos ombros e caiam no chão feito um tapete de linha finíssima. Duas asas ágeis e translúcidas farfalhavam rapidamente, presas às homoplatas da menina.
    - Você! - sibilou Sergeit - Você é uma libélula?
    A menina sorriu, deixou o rapaz de lado e correu na direção oposto.
    - Espere, menina-libélula! - protestou Sergeit, correndo atrás da garota misteriosa.
    Então tudo ficou escuro e barulhento, como se mil máquinas perfuradoras tentassem quebrar aquele sonho. E Sergeit acordou.
    O menino esfregou os olhos fervorosamente, sentindo um grande desapontamento por estar acordado. Nunca, em toda a sua curta vida, tivera um sonho tão encantador e real quanto aquele. Mas ao abrir os olhos e encarar a janela poeirenta, viu o que jamais esperava ver. Uma libélula debatia-se contra o vidro, tentando escapar, mas nada, nem mesmo uma única fenda mínima na janela, abria caminho para a fuga sorrateira do inseto no meio da noite. Então Sergeit compreendeu. Era o seu sonho tentando escapar, fugir para a terra dos sonhos ou sabe-se onde voavam as libélulas.
    Um ímpeto atingiu em cheio os desejos do menino. Queria para si, e apenas para si, aquele sonho. A mulher com o seu tigre, o balão misterioso, o sonho mais verdadeiro que já tivera. A princípio sentiu raiva do inseto que, egoísta, tentava escapar com o seu sonho. O seu sonho!
    Mas, então, aquele pensamento tornou-se um desejo. apanharia a libélula. Ele seria um dos poucos que conseguiriam capturar o próprio sonho. Seria uma vitória, e tio Tom se orgulharia.
    As mãozinhas ágeis tatearam sobre o criado-mudo, apanharam uma caneca de alumínio e, evitando qualquer ruído, o menino arrastou-se pela cama, deslizou para fora dos lençóis e caminhou, vagarosa e sorrateiramente, até o inseto que estava mais preocupado em debater contra o vidro.
    Foi um movimento rápido, quase o mesmo tempo que se leva para um piscar de olhos. A caneca cobriu todo o minúsculo corpinho esverdeao e reluzente do animal. Sergeit confinou o inseto contra o vidro, impedindo-o de voar além do limitado espaço dentro da caneca. A superfície metálica estremceu algumas vezes, revelando o completo desespero do animalzinho em escapar de sua cela fria. Mas Sergeit foi um carcereiro eficiente e, apenas quando percebeu a desistência do animal, moveu a caneca, usando a própria mão como tampa sobre a boca do objeto. Caminhou até a cozinha, pegou um jarro de vidro e lançou o bichinho lá dentro.
    Passou o resto da noite contemplando o voo entristecido do inseto dentro de um jarro.

    Um dia, sem nenhuma explicação, o menino desapareceu. E sumiu, com ele, o balão de Tom. Tia Judite nunca mais viu o sobrinho ou o balão do marido e, daquele dia em diante, sonhos começaram a ser esquecidos pelas pessoas.

    O sumiço de Sergeit trouxe uma lenda. Um folclore que habita as sombras.
    Dizem que quando acordamos e não nos lembramos do sonho que tivemos, significa que, durante a noite, recebemos a visita de Sergeit. Ele vaga pelas ruas noturnas, procurando fendas mínimas nas janelas e, como fumaça, entra em seu quarto, captura seus sonhos na forma de libélulas e as aprisiona em um frasco. E você simplesmente não se lembra.
    Dizem mais. Sergeit não gosta de luz. Seus hábitos noturnos desenvolveram uma terrível aversão ao sol, lãmpadas, faróis ou qualquer coisa luminosa. Por isso as libélulas voam em direção à luz. Elas estão se protegendo. Salvando os sonhos das pessoas contra uma pobre criatura que não suportou a dor nem o fascínio pelo mundo do sono.




    Deixe sempre uma luz acesa. Você nunca sabe o que Sergeit irá tirar de você.

By Pedro Almada

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos