Requiem - O Relojoeiro da Rua dos Inválidos

'Simbora", moçada! Hoje eu tô animado, porque, afinal, consegui finalizar um capítulo de Requiem - O Relojoeiro da Rua dos Inválidos. Para quem não viu, eu já tinha falado um pouco (remotamente, na verdade) sobre a história, uma que comecei a escrever semanas atrás.
A atmosfera dela é bem ampla, pois gira em torno do fúnebre, o cômico, a aventura frenética, enfim... Uma mistura que, penso eu, combina muito bem xD
Se você não viu a matéria anterior, dá uma conferida '>aqui<'!

E, claro, eu não poderia deixar de compartilhar isso com vocês. Por isso dessa vez eu vou postar o primeiro capítulo. Se você gosta de ambientações mais frias, vai gostar dessa aqui!

 Requiem
O Relojoeiro da Rua dos Inválidos

               


Capítulo 1 – Descanse em paz

                Quantas e quantas vidas miseráveis caminham por trilhas tortuosas todos os dias, travando batalhas que não podem ser vencidas, submetendo sua resistência às fraquezas humanas. Para todos esses males, dizem que cada um possui um protetor, um anjo da guarda, talvez. Alguns possuem asas, outros estão presos ao chão. Alguns caminham, outros cavalgam. Correndo ou voando, no entanto, há aqueles que esperam por ajuda, mas ela nunca chega.
               
Na mansão de quase duzentos anos de existência no subúrbio de São Paulo, construída na orla do Parque da Cantareira, o protetor esqueceu-se de sua tarefa. Foi quando Verônica percebeu que precisaria sujar as suas mãos se quisesse viver. Ou, pelo menos, não morrer.
                O sol decidiu não acordar, deixando a tarde à mercê do cinza opaco que encobria a cidade como um manto fúnebre. A promessa de chuva era ume co distante, mas, quem quer que olhasse o horizonte, facilmente saberia que o eco em breve seria um grito descomunal a desabar em grossas gotas de tempestade.
                As portas da mansão estavam fechadas, assim como as janelas estavam protegidas por cortinas escuras. A claridade vespertina estava impedida de penetrar nos domínios da residência, e a mesma cortesia era aplicada aos olhos curiosos. Não se podia ver nada além de uma construção antiga com janelas e portas de madeira negra, paredes desgastadas e um longo corredor de terra ladeado por folhagens desde a entrada - um grande portão de ferro chumbado num muro de tijolos nus - até a varanda onde um pequeno balanço branco e samambaias faziam a decoração de forma simplista.
                Sombras no interior da casa eram vistas passando de um lado a outro através das cortinas, cuja obscuridade era comprometida por luzes amarelas que brotavam de alguma luminária. Do outro lado da porta, salvo da curiosidade da pequena vizinhança, um homem caminhava pelo saguão. Suas feições eram duras, com prováveis cinqüenta anos desenhados em rugas sobre os lábios e no contorno dos olhos. A julgar pelo seu passo apressado e cíclico, ele parecia impaciente, ou talvez preocupado. Por vezes deslizava a mão sobre os cabelos grisalhos, fechava os olhos e, quando os abria, o tom castanho de suas íris cintilava cheio de expectativa.
                - Eles vão nos alcançar... – murmurava o homem, andando em círculos – vão nos alcançar... Depois disso, céus! Não sei mais o que fazer! Sinceramente não sei! Verônica! Verônica, minha filha! Vamos logo com isso!
                O homem voltou-se para a escada e, gritando contra o segundo andar, chamava por Verônica. Não havia resposta, o que deixava o homem ainda mais ansioso. Ele socou o corrimão, arrependendo-se logo em seguida quando a dor atravessou os nós dos dedos e chegou o cotovelo. Havia mais medo do que ira em seus gestos, e o atraso de Verônica piorava a situação.
               
                Entrementes, uma garotinha no quarto, no patamar superior da casa, vasculhava um pequeno baú encapado com couro cru, em busca de qualquer coisa mais importante do que o chamado eufórico do pai. A primeira coisa que suas mãozinhas tocaram foi um pequeno espelho circular de moldura em ouro. As bordas reluziam em resposta à luz tênue do quarto, exibindo linhas florais desenhadas que se encerravam nas asas de uma pequena harpia de ouro acima do espelho, pousada eternamente e compondo a moldura de luxo.
                Verônica fitou o próprio reflexo, e não viu alegria alguma no rosto infantil que chorava. Os cabelos levemente acobreados pendiam em forma de cachos, os olhos castanhos estavam cobertos por uma cortina de lágrimas. O rosto enrubescia a cada tentativa frustrada de contê-las, mas rendeu-se logo. Sua visão ficou turva e nem mesmo os gritos de alerta do pai poderiam impedi-la de se entregar ao seu particular momento.
                Verônica não entendia os motivos da mudança, tampouco aceitaria ser arrancada de sua cidade e carregada contra sua vontade até uma província minúscula na Escócia. Não queria, jamais, ir ao lugar onde enterrou sua mãe, não queria abandonar a única casa que lhe dava a sensação de estar segura. Ali, em São Paulo, o único lugar onde receberia proteção. Isso era o que ela pensava.
                Recolocou o espelho dentro do baú, prendeu-o com um pequeno cadeado e reforçou com uma fivela vermelha. Com a caixa em mãos,lançou um último olhar ao seu quarto, despedindo-se silenciosamente.
                - Meu coração, minha mente... – murmurou ela – estão aqui. Eles sempre estarão não importa o que eu faça, não importa o quão longe eu esteja... Mamãe entenderia, se ela estivesse aqui.
                Verônica olhou pela janela, onde o quintal, agora reduzido a terra revolvida, trazia em sua mente boas lembranças, quando a árvore secava-se e o chão era tingido de amarelo, as cigarras cantavam e os sons dos bem-te-vis ecoavam pelas copas das árvores ao embalo do vento. Seus olhos voltaram-se ao papel de parede lilás com flores branca, sua cama com forro de tom salmão e sua escrivaninha de sucupira. Seria a última vez que aquele cômodo se enquadraria em seu campo de visão. Seria o último dia de sua vida em que possuiria um lar e, para Verônica, era um fato que pedia tempo para ser absorvido.
                Mas o destino não lhe deu tempo algum.
                O som estridente de algo se quebrando chamou a atenção de Verônica. Ao que parecia o som provinha da varanda, que poderia ser vista parcialmente pela janela. A garota correu até o beiral da janela e procurou pela movimentação do lado de fora da casa. Não viu nada, mas avistou a luminária do jardim quebrada. As faíscas tremularam antes se extinguirem completamente, prometendo ao jardim uma noite de breu total. Verônica colou o rosto no vidro, mas sua respiração rápida e nervosa embaçou a visão. Esfregou furtivamente a superfície lisa para enxergar melhor, e prendeu a respiração para não comprometer a visibilidade. Observou, então, que alguém estava na varanda. Um vulto alto e troncudo parecia esperar na porta, ou parecia forçar a maçaneta, era difícil dizer àquela distância.
                - Papai! –Verônica gritou contra a porta, sem tirar os olhos da figura invasora – Papai, tem alguém na porta! Papai?
                Ela não obteve resposta. Tentou mais uma vez, dessa vez chamando por outro nome bastante familiar.
                 - Cassandra! Cassandra, você está aí?
                Não houve resposta.
O silêncio tinha dois significados na vida de Verônica.
O primeiro era paz, mas ela sabia que, desde o assassinato de sua mãe, o termo “paz” fora extirpado de sua vida permanentemente. O segundo era o mais provável, o que fez seu estômago revirar. O segundo significado do silêncio era morte.
                Já não lhe valia de nada o vulto à porta. Fosse quem fosse ele não era o único e, naquele momento, depois de ouvir o silêncio de todos os cômodos em protesto ao abandono, Verônica compreendeu que alguém mais estava em sua casa. E não era uma visita amável.
                - Papai! Papai!
                Com seu baú infantilmente decorado debaixo do braço, a garota correu corredor a fora, abandonando seu quarto sem uma última despedida, disparou pela escada e, lançando seus pés degrau após degrau, ela chegou ao saguão. Seus olhos dançaram pelo cômodo, ignorando os quadros antigos, a mobília antiquada e o papel de parede fúnebre. Desprezou o grande elmo de ouro que reluzia sobre a lareira e nem se deu ao trabalho de admirar o lustre de cristal que pendia sobre sua cabeça. Ela procurou desesperada, até que, finalmente, encontrou quem procurava. E seu mundo perdeu as cores. Era tudo cinza, gelado, de tal forma que até mesmo os mínimos sons foram varridos de sua mente. Ela havia mergulhado em um mundo terrível.
                Seu pai estava caído no chão, inerte. O homem que, minutos atrás chamava por seu nome, tinha sido sentenciado com a pior das punições. A morte. Mas o castigo não era dele. Verônica era a ré de tamanho juízo que cobria sua casa e, aos poucos, seu coração.
                Verônica correu em direção ao pai, atirou-se ao seu lado, deixando de lado seu pequeno baú, que já não tinha tanto valor. Ela temeu aproximar-se mais e, ao olhar o rosto do pai, descobrir o pior.
                - Cassandra! – gritou Verônica em completo desconsolo, pouco se importando com as lágrimas que enchiam seus olhos – Cassandra! Por favor! Cassandra...
                A voz da menina foi morrendo aos poucos, como se o volume de um rádio fosse abaixado gradativamente até não sobrar nada além de um sopro discreto provocado pela estática. Verônica fitou a porta de entrada, agora aberta, onde uma figura imensa oculta pelas sombras encarava a criança debruçada no corpo do pai. Verônica arriscou outro clamor em nome da governanta da casa, mas suas cordas vocais perderam a batalha contra o medo.
                O vulto deu um passo, não com violência, mas cauteloso, como se esperasse pela reação da criança. A resposta de Verônica foi a mais esperada. Ela estremeceu, encolhendo-se sobre o peito do pai, e o desconhecido pareceu achar graça daquele gesto desesperado e impotente. No momento em que Verônica inclinou-se em direção ao seu pai, alguma coisa espetou-a, algo pontiagudo no interior do bolso do casaco de seu pai. Ela parou por um breve momento, sentindo a fisgada incômoda e uma sensação ainda mais mortiça do que a presença de um invasor assassino.
                - Criança... – a voz do desconhecido era arrastada e sibilante, como um pesadelo turvo no meio da noite – A criança...
                - O Que você quer? – sussurrou Verônica, percebendo que fracassara miseravelmente ao tentar entoar uma voz furiosa e desesperada. Não havia fôlego. – O que você quer...
                O homem aproximou-se mais, dessa vez rindo uma gargalhada gutural, como se viesse de todos os cantos da casa. Verônica sentiu-se acuada, não havia para onde correr, e não seria capaz de deixar o pai ali, estirado no chão, ainda que estivesse morto. Mas esse fato não chegou a pesar no coração da menina que, naquele instante, estava tomada pelo pânico.
                - Não se aproxime... – murmurou ela, enfiando a mão no bolso do paletó de seu pai, e sentiu seus dedos tocarem uma superfície gelada e lisa de textura metálica. Um fio de esperança perpassou o coração da menina, certa de que o objeto era uma faca, algo que pudesse protegê-la do invasor, caso o homem se atrevesse a avançar os passos.
                - Não vou... Matá-la... Criança... – a voz ganhou um tom mais humano, mas permanecia intimidadora – não eu... Não hoje...
                O assassino aprumou o corpo e, num movimento rápido e perito, deslizou na direção de Verônica. A garota puxou a lâmina do bolso e, num movimento de puro reflexo, direcionou a lâmina contra seu adversário, pronta para cravar a ponta da faca no rosto de seu atacante. Mas não foi isso que impediu o estranho de avançar.
                Um som de um disparo surdo retumbou pelas paredes, o eco se propagou pelos corredores, dando a impressão de que outros disparos eram realizados, cada vez mais longe. Mas fora um único e certeiro tiro, suficiente para abrir um buraco carnoso no peito do inimigo, que tombou sobre os joelhos, encolheu-se em posição fetal e gemeu infantilmente, enquanto sua imponência assassina esvaía na medida em que o sangue escorria do peito lacerado.
                A criança, debruçada sobre o corpo vazio do pai, encarou a cena com pavor, assistindo, pela primeira vez, um homem agonizando de dor, desejando estar vivo. Ela perguntou a si mesma se seu pai sofrera o mesmo tratamento antes de ser silenciado.
                - Verônica! Céus, Verônica!
                A voz feminina e urgente chamou a atenção da garota, que se virou, apavorada, para encarar uma mulher esbelta na entrada do saguão. Era morena, de olhos negros muito vivos e alarmados, trajava um vestido verde-oliva e sandálias de couro que lhe davam a impressão de ter passado o dia em um parque ensolarado. A mulher segurava uma espingarda bem apoiada sobre o ombro, manuseando a arma com certa experiência.
                - Cassandra! – Verônica se permitiu sorrir, mas engasgou ao perceber que não era um motivo convincente para esboçar qualquer alegria – Cassandra, você...
                A mulher correu em direção à menina, abandonando sua arma no meio do caminho, e abraçou Verônica, como se isso pudesse carregá-las para bem longe da tragédia. Mas a postura maternal da mulher fora diluída ao ver o dono da casa caído inutilmente, feito um boneco de trapos. Os olhos de Cassandra correram sem rumo pelo saguão, desejosos por encontrar algo que Verônica não sabia, até pousar decididos sobre uma adaga embainhada por uma capa de couro, nas mãos de sua protegida.
                - Isso estava com o seu pai? – perguntou Cassandra rapidamente, lançando um olhar para o corredor dos fundos quando o som de porta se batendo ecoou – Essa agada, querida, estava com o seu pai?
                - Sim, Cass. – respondeu a menina, atordoada – e eu, por um momento, queria ter enterrado a lâmina nesse...
                Sua voz sumiu. Ela se deu conta do que estava prestes a dizer, mas não ousou terminar sua frase. Um peso instalou-se sobre seus ombros, era uma sensação antes desconhecida que pressionou seu corpo contra o chão, um peso de culpa e cheio de julgamento. Verônica sabia que, se tivesse tido a chance, teria matado aquele homem, e estremeceu diante da ideia remota de ter gostado da possibilidade. Foi a primeira vez em que esteve tão perto de cometer um assassinato.
                - Verônica, minha querida... – Cassandra chamou a menina, que encarava a bainha da adaga com completo pavor – Verônica, olha pra mim...
                Mas a menina não respondeu aos chamados assombrados da governanta. De repente o corpo de seu próprio pai e do invasor misturaram-se em sua mente, formando um turbilhão de cores onde o escarlate prevalecia, ora em forma de gotas, ora em uma fonte interminável de hemorragia. Ela, sem se dar conta, estremeceu.
                - Verônica! – Cassandra bradou, segurando o rosto da menina com as duas mãos e forçando-a a encarar o rosto lívido da governanta de sua mansão, agora um lar sem nenhuma segurança – Verônica! Ouça, querida! Você precisa ir! Agora, entendeu bem?
                - Eu não posso... – as mãos da menina prenderam-se ao braço do pai, mas ele não sentiu nada, nem mesmo um toque – Eu não vou deixar meu pai...
- Verônica... Olhe bem para o seu pai. Querida, o seu pai está morto – as palavras de Cassandra foram tão eficientes quanto qualquer lâmina apta a rasgar o peito da menina.
Verônica soube, no instante em que vira seu pai, que não havia mais uma alma naquele corpo. Era apenas um pedaço de carne, a mesma carne morna que a segurou nos braços e acalentou-a no colo. Seria ódio, ou medo, ou todos os sentimentos confusos misturando-se na mente de Verônica, mas algo dentro dela provocou-lhe o ácido desejo de trincar os dentes, apertar os pulsos. Esse último gesto trouxe-lhe de volta a presença da adaga em suas mãos, ainda com o punhal reluzente.
- Querida... – a voz de Cassandra guardava uma urgência que, mais tarde, seria compreendida pela criança – querida, eu quero que você saia daqui... Escuta-me, por favor... Deixe essa casa, leve a adaga. Preciso que entregue-a a um homem chamado Pascoal Benevide. Peça abrigo, também... Ele mora no Rio de Janeiro,  na rua dos Inconfidentes.
- Cassandra! – Verônica chorou, afinal, era apenas uma criança, fraca e apavorada, seus únicos pertences eram um baú, uma adaga e o corpo inóspito que lembrava muito o seu pai – eu não posso... Rio de Janeiro! Me leva com você, Cassandra... Me leva...
A governanta deu outro abraço na menina, mas não era um gesto de compaixão. Era uma necessidade, silenciar a garota para que esta pudesse ouvir atentamente às instruções que seriam deixadas a ela. Naquela noite seu protetor estava dormindo, Verônica estava sozinha e tinha, agora, uma tarefa para cumprir.
- Essa adaga representa tudo pelo que seu pai lutou, Verônica - o tom severo, imperativo desarmou o choro da órfã – não seja covarde, menina! Não agora! Faça como digo! Leve até a rua dos Inválidos, na cidade do Rio de Janeiro! Entregue ao relojoeiro Pascoal Benevide! Ouviu bem, menina? Acha que pode se lembrar?
Verônica não respondeu. Na verdade mal entendia uma palavra da governanta, mas não sabia como reagir.
Desde o começo, quando sua vida se resumia a laços de cetim e longos minutos penteando os cabelos, Verônica sabia que o pai tinha um segredo. Desde o dia em que deixaram a Escócia, havia um segredo pairando a família Drummond, um segredo que Verônica, inúmeras vezes, tentou desvendar, mas havia uma barreira intransponível aos seus recursos limitados. Ela estava presa em um mistério que, naquele momento, acabara de matar Kirk Drummond e deixara órfã a sua herdeira. Era Verônica, a criança com uma adaga sinistra.
O ruído estridente de algo desabando nos fundos da casa sacolejou as paredes, apavorando governanta e menina. Cassandra abraçou mais forte o corpo trêmulo de Verônica, que soluçava em meio ao choro e o desejo de carregar Cassandra consigo.
- Eu não posso ir sozinha... – chorou a menina – Ainda que eu vá...
                - Você irá! – Cassandra afastou a menina, decidida, ergueu-se nas pernas trêmulas e apontou para a porta da frente que, aberta, deixava o vento mortiço invadir a casa – Se formos as duas, eles nos pegarão. Ficarei para mantê-los ocupados, e você correrá e levará a adaga! Ouviu bem, Verônica!
                A menina desistiu de questionar. Os olhos da governanta reforçavam as palavras decididas e, logo, Verônica percebeu que nada que dissesse ou fizesse mudaria a ideia de Cassandra. Ainda que mudasse, não haveria tempo.
                Um homem surgiu no corredor. Seu rosto estava coberto por uma máscara de gás cujos olhos eram duas enormes lentes espelhadas. Cassandra correu em direção à sua arma, mas não foi rápida o suficiente. Ainda que fosse uma mulher de nervos resistentes, não era párea para enfrentar o homem sinistro. Ele disparou em direção à espingarda e chutou-a com violência, e a arma escorregou ao longo do corredor, perdendo-se no escuro.
                - Ela é só uma criança! – Cassandra berrou, lançando-se contra o homem, uma atitude de desespero completo – ELA SÓ TEM DOZE ANOS!
                As mãos raivosas da governanta fincaram no braço do inimigo, o homem escorregou para trás e, atrapalhado, sentiu que a mulher dificultava seus movimentos. Cassandra estava desarmada, mas tinha uma fibra da qual Verônica sentiria falta.
                - Corra, Verônica! – Cassandra berrou – CORRA!
                Não era sua vontade, ou mesmo uma atitude pensada. A simples ordem jogada ao vento despertou em Verônica um terrível desejo em correr. Com a adaga seguramente presa à fita de seu vestido e o baú infantil arrastado pela fivela, a órfã correu porta a fora, tropeçou nos estilhaços da cadeira de balanço, onde seu pai costumava se sentar e apreciar a sombra projetada pelo toldo da varanda. Mas não havia nada de familiar, nem mesmo as cores despertavam a menor das lembranças na menina, que desconhecia aquela casa. O lugar parecia ter perdido o sentido. No fim, foi melhor assim, apenas tornou mais fácil a decisão da menina em deixar sua casa. Para sempre.

                A sapatilha de Verônica rasgou logo nos primeiros passos. Saltou sobre o lance de escadas da varanda e, apertando ainda mais forte a fivela do baú no punho fechado, arrastou-o com dificuldade, lutando para não ouvir o duelo travado no interior da casa.
                A passos rápidos ela se dirigiu par ao portão de metal, aproximou-se dele e empurrou-o com força. Ele não se moveu.
                O coração de Verônica entrou em frenesi. Não havia como sair, o portão era alto demais e a menina jamais conseguiria saltar. Entrar novamente na casa estava fora de questão e, quando a situação parecia tenebrosa, outro evento complicou consideravelmente o impasse. Atrás de Verônica a grama chiou, como se algo arrastasse por cima dela. A menina olhou para trás, atônita.
                Um terceiro homem, menor porém mais corpulento, caminhava em passos mancos na direção da órfã. O rosto estava coberto por um pano negro que escorria pelo chapéu de palha com fiapos desgrenhados. Em uma das mãos o homem puxava um machado reluzente, feito de um tipo de pedra azulada, enquanto a outra mão mantinha-se fechada, insistente.
                Não era uma figura muito ágil, a menina logo percebeu. Um fiapo de esperança nasceu a partir dessa constatação, talvez fosse possível fugir do invasor manco. Os olhos infantis de Verônica correram de um lado ao outro e, numa busca interminável pelo escape, ela vislumbrou o que poderia ser sua única saída. O muro da mansão, que divisava o lote de sua família e o Parque da Cantareira, estava aos escombros e, entre os fragmentos, um Ford Mustang 67 de cor branco pérola obstruía a passagem. Não havia ninguém dentro e, a julgar pelas portas abertas e o som estridente que ouvira momentos atrás quando estava dentro da casa, aquele veículo pertencia aos invasores.
                - Menina... – a voz do homem estremeceu e, com ela, o vento sibilou – Menina... A adaga...
                - Me deixa em paz, coisa asquerosa! – Verônica apanhou uma pedra no chão e atirou-a contra seu inimigo.
                Sem esperar e assistir ao resultado de seu arremesso, Verônica correu em direção ao carro, aflita, arrastando seu baú que, a cada baque com o chão, estalava. Subiu no para-lamas, escorregou pelo capô e, entrando no carro, virou a chave, grata por estar na ignição. Mas nada a conteceu, a não ser um leve protesto do motor que, inutilmente, grunhiu e engasgou. Ela insistiu mais, chutou o acelerador, sentindo o desespero engolfando-a, acompanhado por lágrimas insistentes. O fiapo de esperança arrebentara-se.
                - Droga! – berrou ela, socando o volante – Droga! Droga! Drog...
                Em seus acessos de fúria e medo, o carro deslizou. O freio de mão estava solto e, no ímpeto, as rodas cederam às queixas da menina. O homem caminhava em direção ao carro, agora com o seu machado erguido no ar. O carro, lentamente, deslizava para trás, movido apenas pela inclinação do relevo.
                - Vamos, carro estúpido! – chiou Verônica, batendo com o próprio corpo contra a poltrona – Vamos! Não é hora pra morrer! Nem eu, nem você!
                Seu esforço para ligar o carro foi em vão, mas foi suficiente para que o carro deslizasse, pela força da gravidade, barranco abaixo. A terra lamacento aumentou o atrito com as rodas do carro, mas apenas serviu para atrasar o que estava prestes a acontecer.
                Quando o machado do homem baixou contra o vidro, fazendo Verônica, o carro andou. Escorregando ao longo do terreno acidentado do parque, Verônica apenas girava o volante e tentava não se chocar contra uma árvore. O Homem com o machado pareceu cada vez mais distante, uma vez que não era capaz de acompanhar a velocidade do carro.
                Alguns trancos no carro fizeram Verônica bater com a cabeça no teto, mas não foi o suficiente para fazê-la desistir. Ainda com o rosto cheio de lágrimas teimosas, a órfã girou o volante mais uma vez, escapando de três árvores, mas sua experiência como motorista era quase nula. O pneu do mustang travou na lama e, num giro rápido, o veículo acertou a árvore. E Verônica não conseguiu escapar.
                A árvore balançou com o impacto, folhas choveram sobre o capô e, em algum lugar, um corvo grasnou. Os pássaros que descansavam na copa da árvore levantaram voo, irritados, enquanto uma coruja assobiou inutilmente quando precisou abandonar seu repouso.
                Verônica ouviu tudo com muita calma, sua cabeça girou e, por um momento, desejou gritar quando um pássaro chocou-se contra o para-brisa. Mas voz alguma saiu de sua boca. E a menina percebeu que faltava-lhe ar nos pulmões.
                As mãos trêmulas de Verônica desprenderam-se do volante e, por um momento, uma dor aguda inundou seu estômago. Num movimento instintivo ela levou os dedos pequeninos ao foco da dor e, então, sentiu algo úmido sujar suas mãos.
                A garota encarou o próprio ventre. A adaga, antes presa em sua fita, atravessara seu abdome no impacto. O sangue escorria lentamente, como se não tivesse pressa em deixar o corpo jovem. Verônica empalideceu e, numa segunda tentativa, tentou gritar. Mas a voz já não existia, apenas a dor e o vermelho de seu próprio sangue que manchava o ambiente cinza que a envolvia por completo.
                Suas mãos agarraram o punhal e, num movimento brusco, removeram a lâmina, mas foi uma péssima ideia. A dor cruciante inundou o seu corpo, provocando espasmos até mesmo nas pontas dos dedos. Incapaz de resistir à dor, ela deixou que a adaga escapasse de seus domínios. E Verônica desmaiou.
                Debaixo do banco, a lâmina, antes, negra, começou a se desbotar, dando lugar a uma lâmina branca e sem vida, sem reflexo. Apenas uma coisa reluzia, as escritas em sangue seco, “Requiescat In Pace”.

                O estranho assassino com o machado na mão levou algum tempo para descer o barranco lamacento. As árvores farfalhavam ao comando do vento e, subitamente, o silêncio inundou o parque, como se todas as aves e animais fossem afugentadas por aquela presença nada amistosa.
                O homem mancava em direção ao veículo branco que emitia um reflexo metálico, metros à frente, enquanto o machado era arrastado pela terra e desenhando uma linha reta no chão. A figura arrastou-se por mais alguns minutos até, finalmente, tocar com sua mão livre e robusta a lataria amassada. A passos frustrantes e apressados, o invasor fitou a lateral do carro. A porta do motorista estava aberta. Não havia ninguém lá dentro, a não ser uma mancha de sangue enegrecida sobre o estofado de couro.
                A figura grunhiu em protesto, como se estivesse confusa. Onde estaria a menina?, provavelmente ele havia pensado. Era difícil saber se algo como aquilo pensava.
                Decidiu procurar um pouco mais pela criança. Ao virar-se, ele a encontrou.
                Verônica estava de pé, a poucos passos de distância de seu inimigo. Os cabelos, antes cacheados, estavam enegrecidos e ensebados. A pele do rosto, ainda mais pálida, era manchada por dois olhos muito negros e lábios finos. Pequenas veias arroxeadas estavam desenhadas abaixo de seus olhinhos e ao longo da testa saliente. Seu vestido estava manchado de vermelho. Em uma das mãos ela puxava seu baú.
                Então, subitamente, o homem estremeceu. Ele tinha medo. Aquela não era Verônica. Não a menina que perseguira minutos atrás.
                Ela deu um passo. O machado caiu.

                O grito masculino, como uma fera sendo açoitada, ecoou ao longo do parque, e, em meio ao berro, um corvo grasnou.

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Base feita por Adália Sá | Editado por Luara Cardoso | Não retire os créditos